quarta-feira, outubro 31, 2007

O Encouraçado Potemkin (1925)

Sempre quando assisto a filmes clássicos a mesma pergunta me domina: onde nos perdemos no caminho?
Vejo aquelas produções toscas, com recursos técnicos limitadíssimos, com atuações amadorísticas, às vezes mudos, às vezes com imagens desgastadas por causa do tempo, e me surpreendo com a capacidade artística daqueles desbravadores do cinema.
Eiseinstein é um dos pais da arte cinematográfica, ao lado de mestres como Murnau, Fritz Lang, Chaplin, Wiene, Buñuel, ou Griffith.
Assistir a "O Encouraçado Potemkin" é um show de edição (incrivelmente tão ágil quanto dum filme de ação contemporâneo), de fotografia e de criatividade.
Além disto, apesar das críticas feitas ao realismo soviético, é muito interessante vislumbrar um pouco do clima de insatisfação que havia na Rússia pré-revolucionária, quando até mesmo uma sopa feita com carne estragada era capaz de atiçar os ânimos e instigar um motim.
Por fim, não é qualquer um que pode ter a trilha sonora inteira composta por Shostakovich!

Vozes Inocentes (2004)



Os norte-americanos, quando abordam a guerra, geralmente retratam o universo masculino adulto. Voluntários ou não, são os homens que se encolhem ou descobrem bravura no campo de batalha.
Esta é a visão do conquistador. A visão dos EUA é a de quem olha de cima para o resto do mundo.
Porém, se dermos uma bisbilhotada nas produções do gênero em outros países, particularmente em países subdesenvolvidos (ou, para ser politicamente correto, "em desenvolvimento"), constataremos que não raras vezes vemos o mundo através dos olhos das crianças.
Por quê?

Lembremos dos tempo em que éramos crianças. O mundo parecia muito mais assustador e deslumbrante do que é hoje, não era? Muitas coisas sem explicação, e muito a ser conhecido. O tempo não passava e mal podíamos esperar para nos tornar adultos.
A guerra sob a ótica de crianças é comovente por causa disto, pela ingenuidade que há, mesmo em meio a tamanhas atrocidades, no modo como elas lidam com a situação.

Em "Vozes Inocentes", acompanhamos a história de Chava e seus amigos durante a guerra civil em El Salvador. Como toda guerra total, em que os adultos se digladiam até a exaustão das forças e, quando não resta mais homens sobreviventes, faz-se necessário recorrer ao recrutamento infantil, a guerra em El Salvador também não poupou seus rebentos. Aos 12 anos, as crianças eram obrigadas a integrar as fileiras do exército. Quem não queria seguir esta opção, tinha um segunda, e igualmente belicosa, alternativa, unir-se aos guerrilheiros rebeldes. Este é um dos dilemas de Chava.

A produção é inacreditável, bela fotografia, diálogo singelos e cenas comoventes. Porém, "Vozes Inocentes" comete um erro grotesco e imperdoável: não levar até as últimas conseqüências o desenvolvimento lógico do enredo. Não há nada mais decepcionante do que um anti-clímax, do que um desfecho que não faz jus à trama.

Um belo filme, mas que fraqueja e perde parte de seu brilho.

Ônibus 174 (2002)


Isto é o Brasil, meu irmão!

O filme de estréia do diretor José Padilha é a prova de que ele veio pra criar polêmica, cutucar a ferida do brasileiro sem dó. Neste documentário, ele vasculha a vida de Sandro, um ex-menino de rua ex-presidiário que, por aquelas burradas do destino, foi assaltar um ônibus e acabou protagonizando uma situação digna de filmes hollywoodianos.
O documentário é brilhante, é como aquele fiozinho de lã que, quando puxamos, acaba desfazendo a blusa inteira. Através dum único personagem, Padilha rastreia uma série de conexões, num labirinto de indivíduos, na tentativa de compreender a calamidade que o Brasil se tornou.
Sandro é um desgraçado: ainda criança, viu a mãe ser degolada na frente dele, morou nas ruas, cheirou cola e cocaína, sobreviveu ao massacre da Candelária, foi internado na Febem e preso. Ou seja, ele possuía todos os elementos para se tornar uma bomba-relógio humana. Felizes seríamos nós se Sandro fosse uma exceção no Brasil.

É curioso como a sociedade observa os erros que cometeu com surpresa, como se aquilo lhe fosse alheio. No documentário, há um sociólogo que fala um monte de baboseiras, entre elas uma hipótese de que os meninos de rua e mendigos assaltam e matam na tentativa de deixar se serem invisíveis para a sociedade que os excluiu.
Eu entendo a reação dos que estão à margem (e justamente por isto são cognominados de marginais) mais como um sintoma da ausência de formação moral do que duma reação deliberada de deixar a sombra aos quais foram relegados. A banalidade da violência, expressão que já se tornou um clichê na boca dos pessimistas, é uma prova irrefutável de que Kant e Aristóteles, por exemplo, estavam equivocados quando supunham que no ser humano havia o germe da consciência moral e uma inclinação a realizar o bem.
Os conceitos de bem e mal derivam do convívio social, são normas para regular uma existência harmoniosa numa sociedade humana. Por isto, quando indivíduos sentem-se fora desta sociedade, imediatamente tais conceitos deixam de ter validade. O estado de semi-bestialidade aos quais os "marginais" se encontram impedem-nos de cultivar qualquer noção de bondade ou maldade. O que há é a sobrevivência imediata, o alimento do dia, o abrigo da noite. Não há perspectivas duma redenção pós morte ou remorso por um ato realizado, apenas a dor da punição física (realizada pelo abuso policial ou pela exclusão do cárcere).

Ao assistir ontem ao curta de Jorge Furtado, "Ilha das Flores", reparei como ambos os documentários estão vinculados. Um fala da violência que brota da pobreza, o outro fala da diferenciação, da exclusão realizada pela riqueza. Ambos são faces da mesma moeda, enquanto uns partem contra a sociedade, em busca de sobrevivência, outros se sujeitam ao mundo dos párias, dos intocáveis.

Ilha das Flores
Parte 1




Parte 2




É impossível julgarmos os atos dos outros sem nunca termos estado na pele deles. Será que, se você tivesse tido a vida de Sandro, você agiria diferente?

sábado, outubro 27, 2007

300 (2007)

Não assista a "300" se você estiver em busca de fidelidade histórica. O filme baseado na HQ de Frank Miller não é uma reconstrução do que ocorreu durante a guerra entre gregos e persas.
As batalhas entre os exércitos de Xerxes e os povoados helênicos no século V a.C são consideradas como a a primeira demonstração do pensamento e valores ocidental: liberdade individual, honra, superioridade da razão sobre o irracional.
Durante a guerra, o exército muito superior dos persas foi desbaratado por oponentes em menor número, de cidades rivais, mas com um objetivo comum, manter a liberdade. "300" tangencia estas questões, está mais interessado no trabalho gráfico, na reprodução magnífica da linguagem quadrinística.
Aí reside o mérito de "Sin City", que abriu as portas para uma nova forma de expressão no cinema, além disto, erigindo Frank Miller ao status de patriarca desta nova concepção, graças a sua linguagem forte e traços duros.
O filme é estupendo visualmente, desde os cenários até as cenas de luta. O trabalho artístico realizado para simular o desenho de Miller é perfeito. Porém, o enredo é fraco.
Deixemos de lado as incongruências históricas, a total eliminação do papel dos atenienses e de Salamina para a derrota dos persas (aliás, a vitória naval em Salamina foi muito mais importante do que a derrota espartana em Termópilas) e da má construção dos personagens (Xerxes é o único que parece ter algum tipo de sentimento como medo).
"300" é um gênero de cinema que me agrada, bem feito e envolvente, mas algo me incomodou muito, especialmente durante a cena em que a esposa de Leonidas (Gerard Butler), o rei de Esparta que lidera os 300 guerreiros contra o exército de Xerxes (Rodrigo Santoro), fala diante do conselho. Ela suplica que eles enviem reforços para auxiliar o marido, porém, tendo em vista o contexto no qual o filme é lançado, parece ser mais uma mensagem de apoio à guerra do Iraque e, mais do que isto, de retaliação ao Irã (países situados onde era a antiga Pérsia). Posso estar fazendo como aqueles insanos que vêem teorias conspiratórias em tudo, mas quando mensagens explícitas de "precisamos enviar mais tropas para derrotar a tirania" se mesclam com a fala dum presidente belicoso, é porque não deve ser mera coincidência.
Se alguém mais percebeu isto, por favor me avise, para que eu tire esta pulga de detrás da orelha...

quinta-feira, outubro 11, 2007

Tropa de Elite (2007)

"Tropa de Elite" é uma aula.

Não vou falar do roteiro, nem dos atores, nem de qualquer aspecto técnico do filme, pois não faz sentido abordá-los quando a mídia defende que a versão pirata (sim, foi esta que assisti!) não é a "versão final".

O filme extrapola tais limites; por estar em contato íntimo com a realidade do Rio de Janeiro, e, em última instância de todo o Brasil, é impossível não compreendê-lo como sendo quase uma obra documental.

Estamos diante de dois panoramas: o primeiro, da vida na favela, das relações de dominação do narcotráfico, da corrupção policial, da guerra urbana, do medo cotidiano do brasileiro, da classe média supostamente esclarecida no olho do furacão; o segundo, da crise dos direitos autorais e a invasão da pirataria.

"Tropa de Elite" toca num nervo exposto da sociedade brasileira, e o primeiro alvo é o espectador. Quem não conhece (ou não é) um usuário de maconha, crack ou cocaína que atire a primeira pedra!
O narcotráfico está no mesmo patamar da prostituição, do jogo do bicho, e da própria pirataria; só existe porque existem consumidores/jogadores/clientes. Um não existe sem o outro, e enquanto houver a hipocrisia (e o interesse) de criminalizar o narcotraficante e não o usuário, dificilmente se resolveria o problema.
Aliás, problemas é o que não falta no país do samba e futebol, pois, para solucionar um pepino, seria necessário solucionar outros, numa cadeia interminável de soluções impraticáveis numa terra onde tudo é permitido.
A inversão de valores é tão gritante que chegamos a torcer para que o policial do BOPE espanque o traficante, legitimando até aquilo que seria mais abominável ao homem ocidental: a tortura.
E assim o ciclo de problemas se reinicia, ao coagir a população, a polícia utiliza meios criminosos para resolver o crime, numa relação de ódio e medo que nunca se extingue.
Este é o nosso país, no qual a única consciência política é uma turminha se reunir e vestir uma camiseta onde está escrito: CANSEI!

Por outro lado, o filme acabou sendo alvo daquilo que critica. Não é novidade que boa parte dos artigos piratas são fachada para o crime organizado. Talvez "Tropa de Elite" seja o filme com maior audiência antes da estréia da História. Todo mundo queria saber da trama sobre a polícia odiada por todos, tanto pelo malandrinho da favela quanto pelo policial corrupto.
É inegável que, nos próximos anos, haverá uma revisão no conceito de direito autoral. Novas formas de remunerar o produtor terão de ser criadas se não quisermos assistir a uma crise na indústria cultural.
O tempo no qual apenas a classe alta e média tinha acesso a certas modalidades da cultura de massas, como o cinema, o DVD, o CD e o livro está chegando ao fim. Nas ruas, encontra-se todos os sons e filmes mais badalados; na internet, a febre dos MP3, do downloads de livros, de P2P de filmes, ou seja, ou a indústria cultural se renova, ou definha. Não é o tipo de processo que pode ser detido e quando fenômenos como o de "Tropa de Elite" ocorrem, temos a certeza de que a situação está crítica.

E é curioso que um simples filme sobre uma divisão da polícia militar possa causar tais reflexões. Na verdade, "Tropa de Elite" sugere bem mais, desde da microfísica do poder de Foucault até sobre pseudo-filantropia. Cada espectador encontrará uma parte de seu mundo no filme e, se não se sentir atingido por alguma das críticas feitas por ele, é porque é mais alienado do que pensa.