domingo, abril 23, 2006

Old Boy (2004)



Qual a relação entre um brutal filme coreano e a obra de Franz Kafka?

Dae Su, um pai de família, é, sem saber porque, enclausurado por quinze anos num quarto, com acesso apenas a uma televisão. Durante este tempo, sua esposa é assassinada e sua filha desaparece.
Do mesmo modo abrupto pelo qual ele foi encarcerado, ele também é devolvido ao mundo.
A procura por respostas é o tema de "Old Boy".

Para tanto, Dae Su está disposto a espancar, torturar, matar quem quer que seja para descobrir quem é o responsável por sua desdita.
Assim como Joseph K., de "O Processo", Dae Su não sabe contra quem deve lutar, mas apenas que precisa resistir, que precisa obter uma solução, até seu último suspiro.
Vagando pelas ruas da cidade, desconfiando de todos, até mesmo da única pessoa no mundo que resolveu ajudá-lo - a cozinheira Mido -, Dae Su tem apenas cinco dias para juntar todas as peças de um imenso quebra-cabeças.

O ritmo do filme é frenético e atordoante. Intercalando sangrentas lutas e momentos de humor negro, "Old Boy" é, sem dúvida, uma obra extraordinária. Violando todos os princípios narrativos que tornam o cinema contemporâneo previsível, "Old Boy" opta por escolhas difíceis, tabuísticas, incrivelmente lúcidas para resolver os conflitos.
Há reviravoltas, mas nada tão inverossímil que nos faça questionar: "De onde veio isto?"

Apesar da estranheza do enredo, "Old Boy" é extremamente realista.

Esta versão oriental de Kafka é uma obrigação a todos que se deliciam com uma boa trama.

domingo, abril 16, 2006

Crash - No Limite (2004)


Assistir a "Crash" deveria ser quase uma obrigação.
Poucas vezes temos a oportunidade de ver um filme que atinge sua meta sem tematizá-la.
A problemática do preconceito está presente em cada cena, estapeando-nos na cara, mas, em momento algum, ela é verbalizada.

A primeira comparação a ser feita é com o magnífico roteiro de Paul Thomas Anderson para "Magnólia". Tanto neste filme quanto em "Crash", nós nos enveredamos num labirinto de vidas e de frustrações. Pessoas completamente diferentes, mergulhadas no mesmo mundo, tocando-se cotidianamente, confrontando-se, compreendendo-se.

Em "Magnólia", Anderson nos apresenta o afastamento, o distanciamento.
Em "Crash", Paul Haggis nos apresenta a proximidade, os acidentes (de onde vem o título) que nos forçam a reconhecer o outro como pertencente ao mesmo universo que nós.

A trama é fragmentada em vários núcleos narrativos, todos imersos em sua apreensão de mundo e em seus preconceitos próprios.
Há o caucasiano com preconceito em relação aos negros e latinos; há os negros com preconceitos dos brancos e dos próprios negros; há árabes (categorização que inclui, no filme, todos os muçulmanos, mesmo que a maioria islâmica do mundo não seja falante do árabe ou nascida na Arábia Saudita) com preconceito dos latinos; há os chineses, os porto-riquenhos, os tailandeses, os pobres, os ricos, os bandidos, os policiais e há mesmo aqueles que nem possuem classificação.

"Crash" demonstra, com um realismo surpreendente, que preconceito e discriminação não é um "privilégio" dos brancos burgueses, que todos nós, independentes de raça e classe social, já possuímos uma pré-compreensão do mundo que nos circunda e que é através dela que escolhemos nossos círculos de amizade, os ambientes que freqüentamos e as pessoas que costumamos evitar. Não se trata de algo racional, fundamentado em teorias eugênicas, mas sim a própria constituição nossa, enquanto seres humanos, de julgar o próximo e lidar com ele através deste julgamento.

Há um desamparo terrível nesta constatação, como se, para esta falta de tolerância, não houvesse solução. Mas a arte - mesmo que não tenha de possuir esta atribuição - é um modo de voltarmos nosso olhar sobre nós mesmos e percebermos que também fazemos parte deste ciclo de ódio, que, se um filme como "Crash" existe, é porque nós permitimos e, mais do que isto, contribuímos que para chegássemos a este ponto.

Acredita-se que o filme de Haggis simboliza a América pós-11-de-setembro. Nada mais equivocado do que isto. O filme de Haggis simboliza a humanidade, desde seus primórdios pré-históricos até hoje. Nossa época, longe de ser a fundadora do preconceito, apenas o acentua dia após dia.

Infelizmente, "Crash" é a história do nosso cotidiano...

Felizmente, o filme é belo!

sexta-feira, abril 14, 2006

O Jardineiro Fiel (2005)



2006 foi o ano em que Hollywood fingiu estar preocupada com questões sociais.
Falaram sobre preconceitos (Crash, Brokeback Mountain, Transamerica, Capote...), sobre censura e liberdade de expressão (Boa Noite e Boa Sorte...) e sobre grandes corporações que, através da exploração, oprimem povos de países e continentes atrasados (Syriana...).
"O Jardineiro Fiel", filme dirigido por Fernando Meirelles, nosso brasileiro notório do momento - ao lado do astronauta - , se inclui na última classificação.
Por detrás de uma trama amorosa, de uma busca obsessiva, e compreensível, por respostas, há uma conspiração internacional envolvendo a indústria farmacêutica.
Justin Quayle (Ralph Fiennes) é integrante de uma missão diplomática no Quênia. Um homem austero, polido e sem emoções evidentes é confrontado à sua contraparte ativa, visionária e empreendedora, sua esposa Tessa (Rachel Weisz). Esta, ao descobrir o envolvimento de uma poderosa empresa farmacêutica em diabólicos testes realizados em pobres coitados quenianos, é assassinada.
Restam a Justin duas alternativas medonhas: esquecer o assunto e tocar sua vidinha medíocre adiante, ou investigar o caso, honrar com a memória de sua esposa, mesmo que isto custe sua própria vida.
É óbvio que, se Justin optasse pela primeira escolha, mal haveria trama para rechear as quase duas horas de filme.
Ao encarar inimigos influentes, anônimos, ocultos em escritórios suntuosos em edifícios distantes da pobreza tremenda da África, Justin afunda-se gradualmente num lodaçal muito maior do que suas forças podem superar. Seguindo a trilha já percorrida por Tessa, Justin desafia o perigo, sendo levado às conseqüências últimas.
Todavia, "O Jardineiro Fiel" exagera.
Começa bem, com uma trama envolvente, aos moldes das versões cinematográficas de John Grisham (e estas parecem ter se inspirado, de algum modo, em Le Carré), e repleto de reviralvoltas a nos deixar aturdidos. A segunda metade, contudo, não passa de um panfleto enfadonho e ineficaz.
Nada contra o cinema defender uma causa, ainda mais quando se trata de uma boa causa. No entanto, a linguagem do cinema ficcional é distinta do documental. As imagens da pobreza africana, dos maus tratos, da exploração são muito mais enfáticas, na ficção, do que longos discursos questionando a idoneidade da indústria farmacêutica ou as segundas intenções dos corpos diplomáticos europeus ou norte-americanos.
"O Jardineiro Fiel" menospreza a inteligência do espectador, não permitindo que este pense e tire suas próprias conclusões. O filme propõe uma questão, porém, para seu demérito, também apresenta uma resposta. Não impele o espectador a retornar para casa e questionar, a ler artigos em jornais ou revistas, a procurar na internet sobre o caso. A investigação feita por Justin não deve ser repetida por nós; simplesmente devemos engolir as conclusões do filme, e ponto final.
Para quem deseja assistir um documentário sobre o assunto (a exploração da indústria farmacêutica na África), fica então uma sugestão, na qual são apresentados argumentos e contra-argumentos e para que as mentes mais questionadoras possam cavoucar suas próprias respostas: "A Origem da AIDS".
Não é tão fácil de ser encontrado nas locadoras quanto "O Jardineiro Fiel", mas certamente é menos pretensioso.