domingo, junho 04, 2006

Pequeno estudo sobre O Código Da Vinci (2006)



Pensei muito antes de assistir a "O Código Da Vinci".

A experiência com o livro foi frustrante. Graças a um defeito meu que me impede de ler livros que me entendiam, mal passei da metade da obra de Dan Brown.

Quando o filme foi lançado, uma curiosidade natural me impeliu a querer vê-lo, porém, ao folhear o roteiro ilustrado - lançado nas livrarias no mesmo dia em que o filme estreou -, tal desejo diminiu. A crítica feita por conhecidos, que preferiam a obra literária à cinematográfica, também influenciou na decisão em não assistir ao filme.

Todavia, assim como em "Harry Potter", senti-me na obrigação de ver para crer. Se já havia achado o livro ruim, o que pensaria do filme? Não seria este um dos raros casos em que a adaptação superaria o original? Não estaria eu partindo do pressuposto intelectualóide de que todo best seller é, por natureza, uma porcaria?

O Enredo
A trama todo mundo - a não ser que seja habitante de outro planeta ou um completo alienado - conhece: um simbologista americano, Robert Langdon (Tom Hanks), é chamado pela polícia judiciária francesa para comparecer ao Louvre, local onde o curador do museu foi assassinado. Logo descobre que ele é o principal suspeito da polícia e, com a ajuda de uma criptologista da polícia e neta da vítima, Langdon tenta resolver um enigmático quebra-cabeça histórico.
A repercussão que a obra de Dan Brown teve no mundo, principalmente no âmbito teológico, também não é novidade para ninguém. Ao sustentar a hipótese de que Jesus foi casado com Maria Madalena e de que, deste matrimônio, resultou uma linhagem, Dan Brown arrebanhou fãs eufóricos - que percorrem os mesmos locais de Langdon em busca de sua investigação pessoal - e inimigos mortais - a Igreja, alguns historiadores, políticos bitolados, ácidos críticos literários.
Dan Brown não foi o criador desta idéia; deve muito a Henry Lincoln, jornalista da BBC, que primeiro elaborou a hipótese de que, durante o curso da História, existiu um grupo de guardiões da linhagem de Jesus e de que notórias figuras, como Sir Isaac Newton, Leonardo Da Vinci, Claude Debussy, foram grão-mestres desta misteriosa ordem secreta.
No entanto, apesar de dever a idéia a Lincoln, "O Código Da Vinci" não se trata de um plágio, pois, se assim fosse, qualquer obra de ficção que abordasse algum tema histórico e/ou teoria seria um plagiador. O livro/filme de Dan Brown não é nada original, mas também não é uma cópia.

Apenas uma ficção
Os leitores ocasionais, os mesmos que se deslumbraram com a obra de Brown, possuem dificuldade em compreender a relação da ficção com a realidade.
Contudo, a comoção global que "O Código Da Vinci" causou demonstra que não apenas os leitores de fim de semana têm esta dificuldade, mas que até mesmo aqueles reputados como esclarecidos - teóricos, teólogos, apresentadores de TV.
A avalanche de livros e programas televisivos visando "decifrar", "quebrar", "desvendar", "analisar" o "Código Da Vinci" é a prova cabal de que as pessoas não sabem fazer tal diferenciação.
Ficção não é sinônimo de mentira, como geralmente se pensa. Uma obra de ficção é simplesmente aquela que é regida por regras próprias, independente da realidade.

O que isto quer dizer?

Numa obra de ficção, Jesus pode ser o filho de Deus, um camponês revolucionário, um profeta louco, casado, viúvo, ou qualquer outra coisa, desde que a estrutura da obra suporte esta idéia. Ela não precisa estar de acordo com a realidade dos fatos, já que ela é uma metarealidade.
Por isso, atacar uma obra ficcional elegando ser ela mentirosa é tão absurdo quanto defendê-la dizendo ser ela verdadeira.
Uma obra de ficção não é verdadeira nem falsa; o Jesus de Dan Brown é um personagem literário subtraído da história, mas não se trata do "verdadeiro" Jesus histórico.
Os responsáveis pelo devastador sucesso do livro são aqueles que não conseguem fazer esta distinção, entre eles o próprio Dan Brown.

Mas qual é o problema?
Por outro lado, enfatiza-se que a revelação do "verdadeiro" estado civil de Jesus poderia abalar as estruturas da Igreja.
A Igreja Apostólica Romana passou por dificuldades muito maiores do que esta em sua trajetória e ainda está por aqui, claudicando, mas viva. Martinho Lutero causou mais estragos na estrutura clerical do que uma mera obra de ficção poderia fazer. Dan Brown, seus leitores e seus detratores estão supervalorizando o impacto que "O Código Da Vinci" pode causar na ortodoxia e não me espantaria se dentro de cinco ou dez anos ninguém mais se lembrasse deste furor todo.
Além disto, qual seria o problema se Jesus fosse realmente casado? Em que isto prejudicaria a fé dos milhões de cristãos? Será que se ele fosse eunuco também haveria esta mobilização estrondosa?

J. D. Crossan, renomado pesquisador da Bíblia, afirma que podemos obter poucas certezas sobre a vida de Jesus a partir das fontes que possuímos: Jesus era um galileu, viveu durante a administração romana, pregou para os pobres, foi crucificado e seu movimento perseverou após sua morte.
Apenas isto...

Todo o resto está sujeito a dúvida; todo o resto não passa de mera especulação; todo o resto é hipótese.

Méritos e defeitos do filme
"O Código Da Vinci" é um filme cansativo.
As divagações históricas e os flashbacks são interessantes, porém quebram o ritmo da trama e se tornam morosos.
Há aqueles que adoram conspirações, mas quando todos fazem parte desta conspiração, excetuando os protagonistas, a história fica inverossímil.
A teoria literária tende a dividir os personagens em duas categorias: os planos, que não possuem vontade própria e se movem sob força das circunstâncias; e os redondos, personagens completos, que possuem motivações individuais, que movem a história de acordo com suas características.
Um exemplo de personagem redondo no cinema é o Dr. Richard Kimble, de "O Fugitivo". A mudança em sua vida - o assassinato de sua esposa e sua posterior condenação pelo crime - é algo exterior a ele, porém, só isto. Depois deste momento, toda a história está nas mãos de Kimble, que determina o que e como fará. Ele move a história, ao invés de ser movido por ela.
Já os personagens de "Da Vinci", Landgon e Sophie Neveu (Audrey Tautou), não possuem vontade própria. As coisas acontecem a eles, o que os obrigam a agir. São arrastados pelas mãos inábeis do destino (também cognominado de Dan Brown) e não possuem personalidade. São criaturas estéreis, sempre aguardando pela próxima decisão do deus ex machina.
A implausabilidade de certas teorias só convencem os mais desavisados e, para os que ainda caem em tais esdrúxulas teorias conspiratórias, basta assistir a um dos documentários da Discovery Channel sobre o santo graal ou ver alguma das entrevistas de Umberto Eco sobre o assunto.

Os únicos méritos de "O Código Da Vinci" são estimular o gosto pelo estudo da História e pela figura de Jesus, mas isto somente se a encararmos como obra ficcional. Quando se mistura com a realidade, "Da Vinci" presta um enorme, porém reversível, desfavor.