Nos séculos XVIII e XIX, os automata foram uma febre na Europa e nos EUA, construídos com uma precisão milimétrica, com complexas engrenagens, e, de certo modo, foram os avós dos nossos robôs. Estas maravilhas mecânicas, muitas vezes com forma humana, realizavam certas atividades, como tocar um instrumento, escrever, ou jogar xadrez, como no caso famoso do automaton conhecido como "O Turco", que até chegou a derrotar jogadores competentes. "O Turco" foi imortalizado em um ensaio de Edgar Allan Poe, no qual ele tentava desmascarar este incrível automaton, como se não passasse de um mero truque de mágica. O fato é que hoje se reconhece que "O Turco" não era um automaton de verdade, mas que era controlado, de algum modo misterioso, por alguém.
Aliás, automata, mistério e mágica tem tudo a ver com o livro sobre o qual eu gostaria de falar hoje: A Invenção de Hugo Cabret de Brian Selznick.
Antes de tudo, a própria estrutura do livro já é bastante intrigante. Metade romance, metade livro ilustrado, é impossível definir exatamente onde ele se encaixa. Assim como "O Turco", metade automaton, metade truque de mágica, Hugo Cabret se situa num limiar.
Logo descobrimos que o personagem principal, o jovem Hugo, nada tem de convencional. Ele vive dentro da estação de trens de Montparnasse, e quando digo dentro é literalmente dentro. Dentro de suas paredes.
Como ele vai parar lá é apresentado ao longo da narrativa, mas tudo que sabemos à princípio é que Hugo é o responsável por dar corda e ajustar os relógios da estação. No entanto, ele tem uma missão ainda maior do que esta. No pequeno quartinho onde ele vive, ele guarda um automaton quebrado, que ele tenta restaurar com os diagramas feitos por seu pai relojoeiro (que já está morto) em um caderno de notas.
Esta é apenas a trama de fundo de A Invenção de Hugo Cabret, pois a história de fato, e é neste ponto que vários mistérios começam a se acumular um sobre o outro, é quando ele, ao tentar roubar peças de brinquedos de uma lojinha dentro da estação, é apanhado pelo dono dela, um sujeito amargo chamado Georges Méliès, que parece reconhecer aqueles diagramas no caderninho de Hugo.
Qual é a relação entre Mèlies e o automaton, isto é, a invenção de Hugo Cabret?
Para ajudar Hugo a desvendar este mistério, Isabelle, uma garota que é criada por Méliès, resolve ajudá-lo e, juntos, eles acabam não apenas desvendando o segredo guardado dentro do mecanismo do automaton, o que ele tem para desenhar, bem como o incrível passado de Mèlies.
Se você gosta de cinema, talvez tenha associado este nome com alguém... mas não vou relevar o fim da história.
O livro é curto, embora pareça ser imenso nesta edição minha. Há muitas ilustrações, portanto, é uma leitura rápida. Acho que não chegou a me tomar 2 horas de leitura.
Em 2011, este livro foi adaptado ao cinema e o filme se chama simplesmente "Hugo", dirigido por Martin Scorcese. Devo dizer que é um filme um pouco estranho para a filmografia deste diretor, mais conhecido por seus filmes violentos, com gangsters, policiais e desajustados em geral. "Hugo" é uma história fofinha demais para o perfil do Scorcese.
Não é uma adaptação ruim, embora se esforce demais para criar uma atmosfera idílica, mais ou menos ao estilo de O Fabuloso Destino de Amelie Poulain.
Eu não sei, mas quando levamos mais tempo para ver um filme do que para ler um livro, acho que há algo errado aí. Em quase três horas de filme, foi preciso incluir algumas subtramas para reforçar a presença de certos personagens secundários, como o inspetor da estação, interpretado por Sasha Baron Cohen, que em boa parte do livro é quase uma ameaça invisível, a possibilidade de que Hugo seja descoberto e apanhado, enquanto que no filme incluíram um breve romancezinho entre ele e a vendedora de flores que sequer há no livro.
Além disto, houve uma tendência para atenuar certos atos de Hugo e Isabelle, que em algumas partes do livro acabam roubando objetos ou mentindo, enquanto que, no filme, isto foi quase totalmente suprimido, talvez para deixar bastante claro os limites entre o certo e errado para o público juvenil.
Mas, para mim, sem dúvida o mais fascinante no livro são as ilustrações e como elas facilmente são capazes de suplantar o texto.
Ao pensarmos na relação entre homem e máquina, representada pelo automaton, a mensagem de Hugo Cabret não poderia ser mais clara: de que todos nós, mesmo que não possamos perceber, fazemos parte de um gigantesco mecanismo e temos nossa razão de ser, temos algum propósito, temos alguma missão. Ao longo deste livro, acompanhamos como Hugo desvenda sua própria missão pessoal e, neste processo, auxilia outros personagens neste caminho, inclusive até fazendo com que Georges Méliès redescubra quem ele realmente era.